Thursday, May 03, 2007

"Era uma vez" - Acto 3 4|5


São três da manhã, enquanto ditas, vou digitando a crítica que tens que deixar pronta. Estás atento e tentas ao máximo formular um texto coerente. Ainda consigo esboçar um e outro sorriso, desconcentras-te. Perguntas qual o motivo e sem querer que percas o raciocínio releio o que acabaste de ditar.
Reparas que estou cansado, acabo por adormecer quando dizes só faltar reler e corrigir algumas coisas.
Já estou deitado, tapas-me e sinto-me aconchegado.
Acordo às sete da manhã, vou tomar um banho, deixo que durmas mais um pouco. Já temos os sacos de viagem preparados, e o voo para Barcelona é às dez. Saio da nuvem de condensação que se formou para desfocar o padrão kitsh dos azulejos que cobrem as paredes velhas da nossa casa de banho e tu já estás a preparar o pequeno almoço, cheira a torradas. Estás com ar cansado.
Não demorámos muito até sair de casa, disseste-me que acabaste por adormecer às 5 da manhã. O texto estava mal formulado e alterava a ideia que tinhas da crítica.
Estamos com ar de directa, não descansámos o suficiente.
Chegámos ao aeroporto e dirigimo-nos ao chek- in, o avião está atrasado, tu sem paciência, passo sorrateiramente a minha mão por a tua e tento te acalmar. Mantemos os óculos escuros.
Vamos comprar tabaco, fica mais barato. Compramos dois volumes.
O avião descolou com uma hora de atraso. Está cheio, com pessoas estranhas. A teu lado viaja uma Sra. gorda que ocupa o descanso do teu braço. Começas a suspirar impaciente. Tento que te acalmes.
Chegados a Barcelona deparamo-nos com o “grande problema”, as nossas malas foram desviadas, entraram no avião errado. Estamos com pouco dinheiro, temos a roupa do corpo, mas nem força temos para nos mostrar chateados com a situação, olhamo-nos sem proferir qualquer palavra e seguimos à procura duma pensão.
A certa altura conhecemos um tipo que mete conversa connosco, é peruano. Chama-se Carlos, tem os seus 20 anos e um paleio estranhamente convicto para o aspecto de bandido.
Consegue convencer-nos a acompanhá-lo, diz conhecer uma pensão. Não gostei que tivesses cedido, não o conhecemos de lado algum e estamos num sitio que não conhecemos.
Estamos no centro da cidade, chegámos À pensão, tem uma aura bonita, embora seja um edifício velho. Entramos e o Carlos fala com a Dona, uma mulher gorda, de seus 50 anos, com alguma dificuldade em mover-se. Tem varizes nas pernas e fuma como se não houvesse amanhã. É bonita.
Agradecemos ao rapaz e seguimo-la, ao subir a escada de madeira que dá acesso ao corredor que distribui os acessos aos quartos, tentas ajudá-la. Fita-te com um olhar reprovante de quem é capaz de subir cem escadas iguais àquelas. Olhas-me e sorris com ar de gozo. Ficamos na porta do fundo, a única que está de frente para o corredor.
O quarto é florido, o soalho de madeira. Cheira a limpo. A janela dá para um saguão. Despimo-nos e tomamos um banho juntos, abro a pequena janela com vidro igualmente floreado e deparo-me com uma vista magnífica sobre a cidade.
Acabamos por adormecer, exaustos e nus sobre a cama.
Mais tarde, batem à porta com convicção, entra pelo quarto o belo do rapaz peruano. Diz para nos vestirmos que nos vai mostrar a cidade. Sorris com o teu ar aventureiro sem que sequer te aperceberes que estamos nus à vista dele. Não achou estranho o facto de estarmos assim.
Fomos até uma casa de jogos, com mulheres de aspecto duvidoso. Havia uma loira, cabelo queimado do sol, meias de rede, mini saia e um decote que mostrava mais do que cobria. Esperámos cá fora. O Carlos demorou cerca de 20 minutos até voltar com um sorriso explicito na cara. Fomos de mini 1000 até uma tasca onde nos levou a jantar. Percebemos depois que o carro era roubado.
O Carlos conhece esta gente toda e somos recebidos com todo o cuidado. Servem-nos comida peruana. Tu estás encantado com tudo o que se está a passar, eu com o receio habitual. Dás-me a mão por baixo da mesa e tentas acalmar-me. Decido perguntar ao Carlos o que faz da vida e de repente então três transformistas aos gritos, um pandemónio histérico. São amigos/as do Carlos e convidam-nos para ir-mos assistir ao show que vão fazer. Nenhum de nós aprecia estas práticas, mas somos obrigados a aceitar.
Levam-nos para um cabaret, um sitio lindo, kitsh. As mulheres muito bem arranjadas, muito produzidas, os homens rudes, com mãos ásperas do trabalho. Um ambiente caricato e apaixonante típico flamengo. O Carlos chega entretanto com uma miúda de 16 anos. Olhamo-nos e sorrimos.
Bebemos sem nada pagar.
Somos levados para a discoteca mais badalada da noite, a fila é grande na porta de entrada, não estamos vestidos de forma adequada. O peruano com roupas largas e pouco cuidado, acena a um dos porteiros, fazem-nos sinal e passamos à frente daquela gente toda, temos mesa reservada e servem-nos champanhe à conta da casa.
Estou estupefacto e falamos em privado, não consigo entender o que se está a passar, quem é este rapaz, como é que tem estas facilidades. Tu concordas com estes factos estranhos mas estás a adorar o facto de parecer que estamos como personagens dum qualquer filme da máfia.
Acabamos a noite a dançar até que o Carlos sai com uma mulher, vamos atrás e despede-se com um acenar de mão.
Contámos os trocos que tínhamos nos bolsos, somamos dez euros. Vamos até ao taxi mais próximo, perguntas quanto é a viagem até à pensão e diz-te que são quinze euros, contas-lhe a situação e aceita levar-nos por dez. O Sr. fala português, conta-nos experiências passadas enquanto dá voltas pelas partes mais bonitas da cidade. Chegámos finalmente à pensão, vamos buscar as poucas coisas que deixámos no quarto e pagar a estadia. Em vão, o rapaz peruano que dava por nome Carlos já o tinha feito.
Fomos no mesmo taxi até ao aeroporto e no acto do pagamento o homem não quis aceitar o dinheiro, insisti, mas não aceitou. Lembrei-me que levava comigo o diário gráfico do qual arranquei um desenho e lho ofereci. O homem enrugado sorriu.
Dormimos no avião. Acordámos antes de aterrar. Estranhamente a mulher que te incomodou na ida, acompanha-nos na volta, parece Karma. Beijas-me e fica escandalizada.
Chegámos finalmente a Lisboa, procuramos saber das malas e pedimos para que nos sejam entregues em casa. No caminho até casa fazemos o resumo de tudo o que se passou, talvez nunca mais vejamos o Carlos, nem a mulher da pensão, nem o Sr do taxi que tencionava vir a trabalhar em Portugal. Subimos, tomamos um banho e adormecemos juntos. Fim de semana em Barcelona.

1 comment:

Anonymous said...

interessante...