Monday, May 05, 2008

Relógio Sentimental 6|5

Tenho 79 anos, estou sentado num banco de jardim. É um jardim pequeno, o verde é abundante, existem árvores com troncos menos vincados numa expressão que sempre acompanhei.
Vivi desde sempre com especial atenção à expressão sentimentalista do tempo.
Neste banco de madeira as fendas são a marca dos sorrisos e das lágrimas, a marca sentida dum paradoxal efeito borboleta.
Sou um velho simpático e educado, visto-me bem e sinto-me diferente dos outros que têm a mesma idade que eu. As conversas não me interessam, as vidas já não as são e tudo já morreu antes mesmo deles sucumbirem.
Sou um velho que recordo a minha força desde o primeiro suspiro.
Um velho vivido para sentir, mas da forma que a vida se encarregou de me ensinar. Senti sempre tudo duma forma peculiar. Mas isso não foi suficiente para ter alguém sentado aqui a meu lado a respirar este jardim.
Percebo tudo nestas ultimas páginas da minha vida, não vim para ser de ninguém, porque me julguei sempre solto e superior a qualquer um. O que tanto amei é hoje algo que já tenho e não me faz mais feliz. Não amo.

Tenho 50 anos, acordo cedo para ir trabalhar. A casa de banho ao fundo é a que sempre idealizei. Está tudo limpo, não há barulho excepto o da rua num inicio de mais um dia da cidade agitada.
Agarro a escova de dentes e aperto a bisnaga da pasta, levo-a à boca e olho-me ao espelho. Tenho meio século e sorrio porque sou bem sucedido, sinto-me confortável na vida que construí, sozinho e triste.

Estou a dia 18 de Outubro de 2018 rodeado de pessoas queridas. Faço 33 anos e quero festejar porque mereço sentir que trabalho por um ideal que se está a tornar real. Este ano tenho sido recompensado por todo o trabalho.
Sinto-me uma pessoa interessante, tenho alguns cabelos brancos que me dão charme. Mantenho aquela irreverência de criança com menos paciência e mais requinte. Deixei-me de sair à noite para aquelas festas que pintavam o mundo de dourado. Sou um arquitecto pacato com casa própria e um carro a precisar de reforma.

A noite lá fora está fria, passei o dia a pintar os muros do jardim. Ficaram branquinhos, limpos. Bebi café com a Andreia e desabafei contradições que me incomodavam. Amanhã é o 44º aniversário da minha mãe e estou a preparar-lhe uma festa surpresa.
Não percebo ao certo como escrever isto. Nem sei bem o que quero escrever.
Imagino-me num percurso bem sucedido, imagino-me entre as paredes que sempre projectei e com o estatuto que me sinto merecedor. Mas nada disto impede que aos 50 seja uma pessoa fria e triste e que aos 79 esteja só naquele banco de jardim.
Sempre acreditei que a vida ensinar-me-ia a ser feliz. Sempre acreditei que nas ultimas páginas dum livro a estória fosse conclusiva.
Quero ser tudo isto e mais. Trabalhar apaixonado pelo que produzo. Quero viver com a vontade de vencer sem que isso nunca se desvaneça.
E o resto? Onde me encontro será certamente elucidativo. Com quem, menos certamente!

6 comments:

someofme said...

Atrevo-me a comentar, porque sim!

Porque nessa tua busca, nessa vontade imensa de ser feliz, parece-me sempre que te esqueces de deixar que a felicidade chegue junto a ti.

Serás feliz quando e sempre que te deixares ser feliz. :)

Anonymous said...

Sabes que além de bom aquitecto que sei de certeza que o és, darias também um excelente escritor. Se este fosse um começo de um livro eu já não era capaz de parar de o ler.

Continua.

Pedro said...

Vais ser mais feliz do que possas algum dia julgar

Anonymous said...

eu espero mt que assim seja...

WEBSHY said...

Sabes oq ue é que parece que ainda não reparaste??
É que o presente é o futuro que já passou...
É triste...e é por isso que tudo nos escapa...É porque o futuro não existe...

WEBSHY said...

E sabes que mais?? Creio que ja to disse vezes sem conta...
O amor/felicidade é um bónus...
Primeiro estas tu...a tua construção, o teu caminho...
Como se fosses uma flor. Cresces até te tranformares numa flor...quando ela estiver perfeita, alguém a haverá de colher...
Parece piroso e talvez o seja...
Mas parece que todos procuramos a piroseira nas nossas vidas...